Acreditar que é possível ser-se escutador

Quantas histórias cabem num olhar? Que narrativa se esconde num encontro improvável? Que provocações nos suscitam os silêncios de alguém sem nome que inadvertidamente oferece ao nosso quotidiano subtilezas e imprevistos?

João Pacheco apareceu no “Escutar a Cidade” de Fevereiro como um contador de histórias. E falou-nos de outros contadores que deram colorido às suas. E falou-nos dessa capacidade feliz de observar, de silenciar diante de um olhar. Falou-nos de tantos ofertantes de vidas simples que deixam marcas na nossa e cujas histórias dariam filmes.

Talvez o melhor presente deste “aprendiz” de contador de histórias seja o de nos despertar para essa necessidade. Escutar as histórias escondidas nos lugares e nos espaços por onde andamos. Histórias escondidas em cada peito desta grei de buscadores que todos somos e que a nossa humanidade junta debaixo da mesma tenda.

Talvez possamos aprender deste contador de histórias improvável (a sua vida ainda breve reserva-lhe tantas oportunidades para oferecer-nos outras descobertas) que há mais vida escondida para além da frieza e burocracia que tantas vezes atinge as nossas relações, que há algo escondido e novo no coração de todos os orantes que se reúnem connosco nos mesmos espaços litúrgicos… que em todos aqueles anónimos ou conhecidos que se movem no mesmo quotidiano pulsam amores e desamores, alegria e liberdade, ousadia e horizontes menores. Há tanta vida a ser escutada. E nem sempre desejamos fazê-lo. Porque nunca temos tempo.

Há tanta vida escondida nas nossas comunidades, nas nossas paróquias e dioceses. Há silêncios que gritam e esperam por um acreditar e um toque de esperança. Silêncios e temores. Criatividade e sonho que poderia ser oferta narrada, escutada e partilhada. As palavras que dizemos nas nossas assembleias dominicais permanecem ainda muito distantes dessas narrativas escondidas.

Há um mundo-história a ser igualmente escutado. Há desafios e terrores que já não nos dizem nada. Há imagens em frenesim que habilmente nos são oferecidas para que não despertem em nós a dor pelo sofrimento do outro e nos deixem comodamente sentados no sofá da sala ou perdidos entre as correrias dos dias.

Há igualmente um mundo interior – o nosso – que muito poucos arriscam em escutar e narrar. Uma interioridade esquecida tantas vezes; habitada por sombras e memórias, onde os afectos e as desilusões se misturam, onde os sonhos permanecem muitas vezes esquecidos. Esse mundo interior reclama um lugar ao sol na nossa história narrada e escutada.

Por isso, um contador de histórias desperta-nos para uma necessidade e uma ousadia: descobrir dentro de cada um, dentro cada leigo comprometido, dentro de cada consagrado, dentro de cada padre, no interior das nossas comunidades – descobrir essa capacidade de escutar. Escutar para, como o João Pacheco, nos tornarmos “aprendizes” de contadores de histórias. E como ele nos dizia, para aprendermos a conhecer-contar a nossa, a dos outros e a dos passantes improváveis do quotidiano.

Particularmente e porque esse mundo também nos provoca e encanta, arrisco acrescentar que precisamos igualmente de escutar as histórias escondidas nas redes sociais onde ainda tacteamos. Essas pequenas narrativas camufladas por entre frases curtas, gifs animados, selfies e vídeos de circunstância são-nos oferecidas em turbilhão. Não podem ser negligenciadas, porque oferecem em cada clique uma imensidão de sentidos que dariam imenso colorido às parábolas que habilmente podemos contar desde a mesa do café até ao ambão das nossas igrejas.

Um aprendiz de contador de histórias – João Pacheco – numa noite aconchegante de Fevereiro, ofereceu-nos uma habilidade que muito nos sensibilizou: a de aprendermos a contar e a escutar as histórias uns dos outros. Talvez assim a nossa humanidade se revele nesse mesmo aconchego.

Pe. Manuel Afonso
Comunidade Shalom

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